Sócrates Escolástico sobre a Páscoa

Como abordamos o assunto, não acho desarrazoado dizer algumas palavras a respeito da Páscoa. Parece-me que nem os antigos, nem os modernos, que tem afetado a seguir os judeus, tiveram qualquer fundamento racional para debater tão obstinadamente sobre isso. Pois não consideraram o fato de que, quando o Judaísmo foi mudado no Cristianismo, cessou a obrigação de observar a Lei mosaica e os tipos cerimoniais. E a prova disso é clara, pois nenhuma lei de Cristo permite aos cristãos imitarem os judeus. Ao contrário, os Apóstolos expressamente proibiram, não apenas rejeitando a circuncisão, como também depreciando as disputas a respeito de dias de festa. Na epístola aos Gálatas, ele escreve: 'Dizei-me, os que quereis estar debaixo da lei, não ouvis vós a lei?' [Gl 4:21]. Além disso, ele os exorta a não preocupar-se com 'dias, e meses, e anos' [Gl 4:10]. De novo, na Epístola aos Colossenses, ele explicitamente declara que tais observâncias são meras sombras; desse modo, ele diz, 'ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados, que são sombras das coisas futuras' [Cl 2:16-17]. As mesmas verdades são confirmadas por ele na Epístola aos Hebreus com estas palavras: 'mudando-se o sacerdócio, necessariamente se faz também mudança da lei' [Hb 7:12]. Nem os Apóstolos, portanto, nem os Evangelhos, jamais impuseram o 'jugo da servidão' [Gl 5:1] sobre aqueles que abraçaram a verdade, mas deixaram a Páscoa e qualquer outra festa a ser honrada pela gratidão dos recipientes da graça. Assim, na medida em que os homens amam festivais, pois eles permitem uma pausa no trabalho: cada indivíduo em todo lugar, de acordo com sua própria decisão, tem celebrado a memória da paixão salvadora de acordo com um costume prevalente. O Salvador e seus Apóstolos não nos deixaram qualquer lei para guardar essa festa; nem os Evangelhos, nem os Apóstolos, nos ameaçam com qualquer pena, punição, ou maldição, por negligenciá-la, como a Lei mosaica faz com os judeus. (...) O propósito dos Apóstolos não era apontar festivais, mas ensinar uma vida justa e piedosa. E parece-me que, assim, tantos outros costumes estabeleceram-se em determinadas localidades de acordo com o uso. Dessa forma, também a festa da Páscoa acabou sendo observada em cada lugar de acordo com as peculiaridades do povo, já que nenhum Apóstolo legislou sobre a matéria. E que a observância originou-se não por legislação, mas por costume, os próprios fatos indicam. Na Ásia Menor muitas pessoas guardaram o décimo quarto dia da lua, desconsiderando o sábado; e mesmo assim nunca separaram-se dos que fazem de outra forma, até que Vitor, bispo de Roma, influenciado por zelo muito ardente, fulminou uma sentença de excomunhão contra os quartodecimanos na Ásia. Por isso também Irineu, bispo de Lyon na França, severamente censurou Vitor em carta por seu zelo imoderado, dizendo-lhe que, apesar dos antigos diferirem na celebração da Páscoa, eles não desistiram da comunhão mútua. Também Policarpo, bispo de Esmirna, que depois sofreu o martírio, continuou em comunhão com Aniceto, bispo de Roma, apesar dele, de acordo com o uso em Esmirna, guardar a Páscoa no décimo quarto dia, como Eusébio atesta em seu quinto livro da História Eclesiástica.

(...) Além disso, os quartodecimanos afirmam que sua observância do décimo quarto dia foi transmitida a eles pelo Apóstolo João, enquanto os romanos e outros ocidentais nos asseguram de que seu costume originou-se com os Apóstolos Pedro e Paulo. Nenhum dos lados, contudo, pode produzir qualquer testemunho escrito em confirmação do que dizem (História Eclesiástica, V, 22).