Irineu: sacrifícios no Antigo e no Novo Testamentos

Disso tudo fica claro que Deus não lhes pedia sacrifícios e holocaustos, mas fé, obediência e justiça para o bem deles. Como por meio do profeta Oséias o Senhor lhes mostrava a sua vontade, dizendo: “Quero a misericórdia mais que o sacrifício e o conhecimento de Deus mais que os holocaustos”. Também nosso Senhor lhes lembrava: “Se tivésseis entendido o que significa: Quero a misericórdia e não o sacrifício, nunca teríeis condenado os inocentes”, testemunhando assim que os profetas haviam pregado a verdade e culpando a eles de serem estultos por sua culpa.

Aconselhando também aos seus discípulos a oferecerem a Deus as primícias das suas criaturas, não porque precisasse, mas para que não se mostrassem inoperosos e ingratos, tomou o pão que deriva da criação, deu graças, dizendo: “Isto é o meu corpo”; do mesmo modo tomou o cálice, que provém, como nós, da criação, o declarou seu sangue e estabeleceu a nova oblação do Novo Testamento. É esta mesma oblação que a Igreja recebeu dos apóstolos e que, no mundo inteiro, ela oferece a Deus que nos dá o alimento, como primícias dos dons de Deus na Nova Aliança.

Malaquias, um dos doze profetas, a profetizou dizendo: “Não tenho prazer em vós, diz o Senhor onipotente, e não me agrada o sacrifício de vossas mãos; porque do levante ao poente meu nome é glorificado entre as nações e em todo lugar se oferece incenso ao meu nome e sacrifício puro; porque o meu nome é grande entre as nações, diz o Senhor onipotente”. Com estas palavras afirma de forma claríssima que o primeiro povo cessaria de oferecer a Deus e que em todo lugar lhe seria oferecido sacrifício puro e que o seu nome seria glorificado entre as nações.

Qual outro nome é glorificado entre as nações a não ser o de nosso Senhor por meio do qual é glorificado o Pai e glorificado o homem? [...] Portanto, sendo o nome do Filho próprio do Pai e, em todo lugar, a Igreja oferece ao Deus onipotente por Jesus Cristo, pelos dois motivos diz justamente: “Em todo lugar é oferecido incenso ao meu nome e um sacrifício puro”. João diz no Apocalipse que o incenso são as orações dos santos.

Sacrifício puro e aceito por Deus é a oblação da Igreja, tal como o Senhor lhe ensinou a oferecer em todo o mundo. Não por necessitar de nosso sacrifício, e sim porque o ofertante se enche de glória quando o seu dom é aceito. Pela dádiva a um rei manifesta-se a homenagem e a afeição. Querendo o Senhor que, com simplicidade e inocência, oferecêssemos nossos dons, deu-nos o preceito: “Se estás para fazer tua oferta diante do altar e te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão: só então, vem fazer a tua oferta”. Faz-se, pois, mister oferecer a Deus as primícias de suas criaturas, como Moisés também já dissera: “Não te apresentarás de mãos vazias diante do Senhor teu Deus”. Quando o homem quer manifestar a Deus a sua gratidão, oferece-lhe os próprios dons por ele mesmo dados e recebe a honra que dele provém

Nenhuma das oblações é rejeitada: oblações lá e oblações aqui; sacrifícios entre o povo, sacrifícios na Igreja. A forma, porém, de tal maneira mudou, que já não são oferecidos por servos, e sim por filhos. Um só e o mesmo é o Senhor; há, contudo, o caráter próprio da oblação servil, há o próprio da oblação dos filhos, de modo que as oblações são sinal da liberdade possuída. Para Deus não há nada vão, nem sem significado ou sem motivo. Por isso, o seu povo lhe consagrava os dízimos. Mas, depois, os que receberam a graça da liberdade põem à disposição do Senhor tudo o que possuem, dando com alegria e generosidade não apenas as coisas de menor valor, pela esperança que têm das maiores; como aquela viúva tão pobre que pôs no cofre de Deus tudo o que possuía.

No princípio Deus olhou para os dons de Abel porque eram oferecidos com sinceridade e justiça; mas não olhou para o sacrifício de Caim, porque havia duplicidade no seu coração: inveja e malícia contra o seu irmão. Manifestando os seus pensamentos ocultos, o Senhor lhe dizia: “Se mesmo oferecendo com retidão, não partilhas com retidão, como não pecaste? Acalma-te”, porque Deus não se aplaca com o sacrifício. Se alguém quiser oferecer com pureza, retidão e exatidão só aparentes, mas na sua alma não partilha a comunhão com o seu próximo e não tem o temor de Deus, não engana a Deus oferecendo o sacrifício com exatidão exterior tendo dentro de si o pecado. Não será esta oferta a aproveitar alguma coisa a tal homem, mas a eliminação do mal concebido dentro dele, para que com um ato insincero, o pecado não torne o homem suicida. 

[...] Portanto, os sacrifícios não santificam o homem, pois Deus não precisa de sacrifício, mas a consciência de quem oferece santifica o sacrifício, se é pura faz com que Deus o aceite como provindo de amigo. “Pecador, porém — diz —, é quem mata para mim um bezerro como mataria um cão”.

Porque a Igreja oferece com simplicidade, justamente foi julgado puro junto de Deus o seu sacrifício. Como Paulo diz aos filipenses: “Tenho em abundância agora que recebi de Epafródito o que vós me enviastes, fragrância suave, sacrifício agradável que Deus aceita”. Cumpre, então, fazermos oblações a Deus e em tudo sermos gratos ao Criador, com mente pura e fé sincera, na firme esperança, na caridade fervorosa, oferecendo-lhe as primícias da criação, criação que lhe pertence. E a Igreja é a única a fazer ao Criador esta oblação pura, oferecendo-a com ação de graças por meio de suas mesmas criaturas. Os judeus já não oferecem: suas mãos estão cheias de sangue, porque não receberam o Verbo pelo qual é oferecido a Deus, como não o oferecem todas as assembléias dos hereges. Com efeito, alguns dizem que o Pai é diverso do Criador e ao lhe oferecer dons tirados do mundo criado, provam que ele é ávido e desejoso do bem alheio; outros dizem que o nosso mundo derivou de degradação, ignorância e paixão, e então, oferecendo os frutos desta paixão, ignorância e degradação ofendem o Pai e lhe fazem mais injúria do que dar-lhe ação de graças.

[...] Ele não precisa destas coisas, contudo quer que as façamos para o nosso bem, a fim de não sermos infrutuosos; e o próprio Verbo prescreveu ao povo que faça as oblações, embora não precisasse delas, para que aprendessem a servir a Deus, como quer que nós também ofereçamos continuamente e sem interrupção nossos dons no altar.

Há, portanto, altar nos céus, aonde sobem as nossas preces e oferendas; e há templo, como diz João no Apocalipse: “Abriu-se o templo de Deus”; e tabernáculo: “Eis — diz — o tabernáculo de Deus, no qual habitará com os homens” (Contra as heresias, IV, 17-18).