Atanásio: o dilema de Deus e a redenção

Ora, a morte exercia cada vez mais seu poder e a corrupção subsistia no meio dos homens. Desta forma, o gênero humano encaminhava-se para a perda. O homem racional, criado à imagem do Verbo, desaparecia e a obra de Deus ia se arruinando.

Efetivamente, como disse, por causa da lei, a morte continuava devastadora; impossível eliminar a sanção promulgada por Deus, por causa da transgressão. Era, de fato, absurdo e ao mesmo tempo inconveniente o que sucedia.

Seria incoerente que a palavra de Deus mentisse no caso de que, promulgada com toda certeza a lei de morte para o homem transgressor do preceito, este não morresse após a transgressão, mas ficasse sem efeito a sentença divina. Deus não seria verídico, se após ter declarado que haveríamos de morrer, de fato não morrêssemos.

Por outro lado, não convinha que, uma vez criados, seres racionais e partícipes do próprio Verbo perecessem e, corrompidos, voltassem ao nada. Era incompatível com a bondade de Deus (cf. Rm 2,4s) que seres por ele criados fossem destruídos porque o diabo os havia enganado. Aliás, teria sido de todo indigno fosse a arte empregada por Deus ao criar os homens destruída pela negligência destes, aliada à ilusão dos demônios.

Então, o que faria Deus, que é bom, uma vez que seres racionais pereciam e as obras divinas se precipitavam na ruína? Deixar a corrupção prevalecer sobre eles e a morte dominá-los? [...]

Por conseguinte, não convinha deixar os homens serem arrebatados pela corrupção, por ser isto impróprio e indigno da bondade de Deus. Como, porém, devia ser assim, era também oportuno, ao invés, manter o princípio da veracidade de Deus na legislação sobre a morte. Seria impensável que, para nossa utilidade e conservação, Deus, Pai da verdade, se mostrasse mentiroso.

Que devia, pois, acontecer? Que faria Deus? Exigir dos homens arrependimento da transgressão? Poder-se-ia afirmar ser isto digno de Deus. Da mesma forma que haviam os homens passado da transgressão à corrupção, voltassem do arrependimento à incorruptibilidade. Mas o arrependimento não salvaguardaria o que a Deus convinha; pois, uma vez mais, ele não continuaria verídico se os homens não ficassem sob o poder da morte. Além disso, o arrependimento não liberta das condições naturais, mas apenas põe termo aos pecados.

Se, portanto, fosse apenas a falta, sem a conseqüente corrupção, o arrependimento bastaria. Mas, uma vez que a transgressão adiantou-se e os homens se achavam sob o poder da corrupção devido a sua natureza, e privados da graça da conformidade com a imagem, que fazer ainda? De que precisavam os homens, senão do Verbo de Deus, que antes do começo criara todas as coisas do nada, a fim de obterem tal graça e restauração?

Competia-lhe reconduzir o corruptível à incorrupção, e salvar o que convinha ao Pai em todas as coisas. Ele, o Verbo de Deus, acima de tudo, era o único, portanto, capaz de refazer todas as coisas, de sofrer por todos, de ser em favor de todos digno embaixador junto do Pai (A encarnação do Verbo, I).