Irineu sobre a queda e a reconciliação em Cristo

Uma vez que a apostasia nos tiranizava injustamente e - embora fôssemos por natureza propriedade de Deus onipotente - alienava-nos contrariamente à natureza, tornando-nos seus próprios discípulos, o Verbo de Deus, poderoso em todas as coisas, e não defeituoso com respeito à sua própria justiça, retamente voltou-se contra essa apostasia, e redimiu dela sua propriedade, não por meios violentos - como a apostasia havia obtido domínio sobre nós no começo, quando loucamente roubou o que não era seu - mas por meio de persuasão [...]. Assim o Senhor redimiu-nos através de seu próprio sangue, dando sua alma por nossas almas, e sua carne por nossas carnes, e derramou o Espírito do Pai para a união e comunhão de Deus e homem, fazendo-nos participar de Deus por meio do Espírito e, por outro lado, ligando o homem a Deus por sua encarnação, e concedendo-nos a imortalidade por sua vinda (Contra as heresias, V, 1).

Nós ofendemos [a Deus] no primeiro Adão, quando este falhou em cumprir Seu mandamento. No segundo Adão, entretanto, somos reconciliados, sendo feito obediente até a morte (Contra as heresias, V, 16, 3).

Ora, este é o Criador; pelo seu amor é nosso Pai; pelo seu poder é nosso Senhor; pela sua sabedoria é aquele que nos criou e modelou; é precisamente com ele que nos tornamos inimigos pela desobediência ao seu mandamento. Eis, então, por que, nos últimos tempos, o Senhor nos restabeleceu na amizade, pela sua encarnação, tornando-se mediador entre Deus e o homem, propiciando-nos o Pai contra o qual pecáramos, reparando a nossa desobediência com a sua obediência, dando-nos a graça da conversão e da submissão ao nosso Criador (Contra as heresias, V, 17).

Uniu, pois, o homem com Deus e operou a comunhão entre Deus e o homem, porque não poderíamos, em absoluto, obter participação alguma na incorruptibilidade se não houvesse vindo [o Verbo] habitar entre nós. Pois se a incorruptibilidade tivesse permanecido invisível e oculta, não nos seria de nenhuma utilidade. Fez-se, pois, visível a fim de que integralmente [isto é, em corpo e alma] recebêssemos uma participação desta incorruptibilidade. E porque todos nós estamos envoltos na criação originária de Adão e estamos vinculados à morte por causa da sua desobediência, era conveniente e justo que, por obra da obediência de quem se fez homem por nós, fossem quebradas as [cadeias] da morte. E porque a morte reinava sobre a carne, era preciso que fosse abolida por meio da carne e que o homem fosse libertado de sua opressão. "E o Verbo se fez carne" (Jo. 1,14) para destruir, por meio da carne, o pecado - que, por obra da carne, havia adquirido o poder, o direito de propriedade e domínio - para que não mais existisse entre nós. Por essa razão, nosso Senhor tomou uma corporeidade idêntica à da primeira criatura, para lutar em favor dos primogênitos e vencer em Adão, já que Adão havia nos ferido [de morte] (Demonstração da pregação apostólica, 31).

O Verbo, preanunciando por meio do profeta Isaías os acontecimentos futuros - são profetas porque anunciam o que irá acontecer - se expressa assim: 'Eu não me rebelo, nem me contradigo. Ofereci minhas costas aos açoites e minha face às bofetadas; não furtarei meu rosto à afronta das cuspidas" (Is. 50,5-6). Assim, pois, pela obediência a que se submeteu até a morte, pendurado no madeiro, destruiu a desobediência antiga cometida na árvore. E como o próprio Verbo onipotente de Deus, em sua condição invisível, está entre nós estendido por todo este universo [visível] e abraça sua largura e sua extensão e sua altura e sua profundidade - pois por intermédio do Verbo de Deus foram dispostas e governadas aqui todas as coisas -, a crucificação [visível] do Filho de Deus teve também lugar nessas [dimensões, antecipadas invisivelmente] na forma da cruz traçada [por Ele] no universo. Ao surgir visivelmente, manifestou a participação deste universo [sensível] em sua crucificação [invisível], a fim de revelar, graças à sua forma visível, sua ação [misteriosa e oculta] sobre o visível, a saber, como é Ele quem ilumina a altura - isto é, o celeste - e contém a profundidade - as regiões subterrâneas - e se estende ao largo, do Oriente até o Ocaso, e governa, como comandante, a região norte e a extensão da Média, e convoca todas as partes e os dispersos para conhecer ao Pai (Demonstração da pregação apostólica, 34).