Irineu de Lião sobre a tradição da verdade

A tradição dos apóstolos, que foi manifestada no mundo inteiro, pode ser descoberta em toda igreja por todos os que queiram ver a verdade. Poderíamos enumerar aqui os bispos que foram estabelecidos nas igrejas pelos apóstolos e os seus sucessores até nós; e eles nunca ensinaram nem conheceram nada que se parecesse com o que essa gente vai delirando. Ora, se os apóstolos tivessem conhecido os mistérios escondidos e os tivessem ensinado exclusiva e secretamente aos perfeitos, sem dúvida os teriam confiado antes de a mais ninguém àqueles aos quais confiavam as próprias Igrejas. Com efeito, queriam que os seus sucessores, aos quais transmitiam a missão de ensinar, fossem absolutamente perfeitos e irrepreensíveis em tudo, porque, agindo bem, seriam de grande utilidade, ao passo que se falhassem seria a maior calamidade (Contra as heresias, III, 3, 1).

Sendo as nossas provas tão fortes, não é necessário procurar noutras pessoas aquela verdade que facilmente podemos encontrar na Igreja, porque os apóstolos trouxeram, como num rico celeiro, tudo o que pertence à verdade, a fim de que cada um que o deseje, encontre aí a bebida da vida. É ela definitivamente o caminho de acesso à vida e todos os outros são assaltantes e ladrões que é mister evitar. Por outro lado, deve-se amar com zelo extremo o que vem da Igreja e guardar a tradição da verdade. Ora, se surgisse alguma controvérsia sobre questões de certa importância, não se deveria recorrer a igrejas mais antigas, onde viveram os apóstolos, para saber delas, sobre a questão em causa, o que é líquido e certo? E se os apóstolos não nos tivessem deixado as Escrituras, não se deveria seguir a ordem da tradição que transmitiram àqueles aos quais confiavam as Igrejas? (4, 1).

Muitos povos bárbaros que crêem em Cristo se atêm a esta maneira de proceder; sem papel nem tinta, levam a salvação escrita em seus corações pelo Espírito, guardam escrupulosamente a antiga tradição, crêem num só Deus, Criador do céu e da terra e de tudo o que está neles e em Jesus Cristo, Filho de Deus, o qual, pela sua imensa caridade para com os homens, a obra por ele modelada, submeteu-se à concepção da Virgem para unir por seu meio o homem a Deus; padeceu sob Pôncio Pila tos, ressuscitou, foi assunto na glória e, na glória, virá como Salvador dos que se salvarão e Juiz dos que serão julgados e enviará ao fogo eterno os deformadores da verdade e os que desprezam seu Pai e sua vinda. Os iletrados que aceitaram esta fé são uns bárbaros quanto a nossa língua, mas, no que se refere ao pensamento, aos usos e costumes, são, pela fé, sumamente sábios e agradáveis a Deus e vivem na completa justiça, pureza e sabedoria. E se alguém, falando na língua deles, lhes anunciasse as invenções dos hereges, logo tapariam os ouvidos e fugiriam bem longe para sequer escutar esses discursos blasfemos. Assim, graças à antiga tradição dos apóstolos, não admitem absolutamente se possa pensar em nenhuma das invenções mentirosas dos hereges (4, 2).

A verdadeira gnose [conhecimento] é a doutrina dos apóstolos, é a antiga difusão da Igreja em todo o mundo, é o caráter distintivo do Corpo de Cristo que consiste na sucessão dos bispos aos quais foi confiada a Igreja em qualquer lugar ela esteja; é a conservação fiel das Escrituras que chegou até nós, a explicação integral dela, sem acréscimos ou subtrações, a leitura isenta de fraude e em plena conformidade com as Escrituras, explicação correta, harmoniosa, isenta de perigos ou de blasfêmias e, mais importante, é o dom da caridade, mais precioso do que a gnose, mais glorioso do que a profecia, superior a todos os outros carismas (IV, 33, 8)